23 dezembro 2008

20 anos da morte de Chico Mendes

Neste 22 de dezembro se cumpriu duas décadas da morte de um mito: o líder seringueiro, sindicalista e ambientalista Chico Mendes. a Floresta Amazônica e milhares de trabalhadores extrativistas ainda esperam que seu ideal seja alcançado

Chico vive, hoje, em nomes de avenidas, parques, institutos, fundações, prêmios, na memória afetiva da população e em cada canto da floresta. Mas o que sobrou do seu legado?

Raimundo Monteiro, 68 anos, é um dos homens que mais tempo e intensamente conviveu com Francisco Alves Mendes Filho, o Chico Mendes, seringueiro, sindicalista e estandarte da causa ambiental assassinado há 20 anos, no mesmo mês de dezembro em que completaria 64 anos - Chico foi morto com tiros por Darci Alves Pereira, a mando do pai de Darci, Darly Alves da Silva. Ambos foram condenados a 19 anos de prisão. Antes de serem companheiros de sindicato e de embates, Chico e Raimundo compartilharam o ofício de extração do látex e os tempos de juventude. O primeiro tinha 21 anos e o segundo, 16, quando se conheceram no seringal Cachoeira, em Xapuri, no Acre.

Chico vive, hoje, nas 56 reservas extrativistas criadas no país. Em nomes de avenidas, parques, institutos nacionais, fundações, prêmios. Mas estará ainda viva, na prática mais que no discurso, a obsessão por seus ideais mais caros? As opiniões se dividem, e Raimundo prefere o otimismo. Depois de amargar ao menos cinco anos de preços baixos pagos pelo quilo da borracha, ele vê na instalação em Xapuri da fábrica de preservativos Natex - iniciativa do governo estadual com apoio do governo federal -, um novo caminho para uma via de poucas saídas. Hoje, a Natex paga 4,10 reais por quilo de borracha seca (equivalente a aproximadamente dois quilos de látex, o líquido branco retirado da seringueira). Nos anos 80, o quilo do látex chegou a valer 40 centavos de real. Raimundo é um dos fornecedores de matéria-prima da empresa, entregando todas as semanas 48 litros de látex (24 quilos de borracha seca), extraídos em sua colocação (área do seringal), a Fazendinha. Enquanto a Natex absorveu a produção de 450 famílias em 2008, o governo estadual melhorou as condições dos ramais de acesso às comunidades e expandiu a rede elétrica. Mas um termo chave da negociação, a forma de pagamento, é contestada por muitos seringueiros. A gerente geral da empresa, Dirlei Bersch, diz que os trabalhadores começaram 2007 recebendo mensalmente. Depois, a cada quinze dias e, hoje, semanalmente. No entanto, de acordo com o gerente de campo da Natex, João Pereira da Silva, alguns esperaram até 50 dias pela paga, em função da burocracia para a liberação da verba.

Manoel Vieira Ferreira, 66 anos, foi um deles. Cearense, ele é filho de um dos mais de 50 mil "soldados da borracha", nordestinos que migraram para a Amazônia no início da década de 40, alistados pelo governo com a missão de extrair borracha para suprir a indústria bélica norte-americana durante a Segunda Guerra Mundial. Manoel cresceu sabendo que o pai veio para um Acre bastante diferente do que "comprou" das propagandas governistas. "Nos cartazes, eles colocavam aquela mata fechada bonita, um monte de seringueira de um lado da propriedade, do outro, o rio. Mas para chegar a uma árvore de seringa, a gente tem de andar até duas horas." Na Reserva Extrativista Chico Mendes, ele se fez seringueiro por herança imaterial, desde os 12 anos, e só parou há pouco mais de seis.

Casa de Chico Mendes: a residência, aberta à visitação pública, conserva a maioria de seus objetos

Manoel largou a borracha porque a resistência física diminuiu e a aposentadoria de um salário-mínimo, insuficiente, chegou. Agora, ele complementa a renda vendendo milho, farinha, algum látex que o filho extrai em suas estradas, criações pequenas de porco, galinha e boi. Como muitos na região, ele recorreu ao gado para manter a família. Até setembro, contava com 80 cabeças, mais do que as 30 permitidas pelo plano de manejo da Resex (Reserva Extrativista) Chico Mendes, onde vive. De um mês para o outro, reduziu o rebanho a 40 unidades. Quem conhece Manoel, sua casa e terras, compreende que o que o moveu a vender bezerros - "um forte vale uns 300 contos" - não foi a ganância, e sim a necessidade. "O seringueiro precisa do dinheiro na mão. Adoeci aqui um tempo que se não fosse o boi, eu morria."

Raimundo Monteiro: juventude, sindicalismo, embates e empates ao lado do amigo deixaram saudade

Milhares de ex-seringueiros e extrativistas se encontram em situação semelhante no Acre. Em 2006, de acordo com José Maria de Aquino, coordenador do Conselho Nacional dos Seringueiros no estado, foram contabilizadas aproximadamente 12 mil famílias extrativistas, das quais fazem parte cerca de 20 mil seringueiros. Destes, apenas 3.119 trabalhadores, 13,9% do total, estavam de fato em atividade, segundo dados da Seaprof - Secretaria de Estado de Extensão Agroflorestal e Produção Familiar. No ano passado, esse número caiu para 2.787. "Viver só da seringa, nenhuma família mais vive", afirma Aquino. A complementação do orçamento vem de outras atividades extrativistas, pequenas lavouras e criação de boi.

Alguns moradores da Resex Chico Mendes chegam a mais de 200 cabeças de gado. E seja por necessidade ou cobiça, a criação de boi soterra a Floresta Amazônica. É fato que unidades de conservação estaduais, federais e terras indígenas ultrapassam 50% dos mais de 15 milhões de hectares de território do estado. Entretanto, de acordo com o sistema Prodes de monitoramento por satélite, utilizado pelo INPE - Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, desde 1988, mais de 1,12 milhão de hectares foram desmatados no Acre - área superior a 7% de seu território.

Mesmo dentro dos redutos protegidos por lei, a floresta seguiu caindo. E queimando. Dados do SIPAM - Sistema de Proteção da Amazônia, apontam que, até 2007, 153.920 hectares foram desmatados nessas porções de mata. Ironia do destino, a Resex Chico Mendes, a maior delas, com mais de 930 mil hectares, é também a que mais árvores tombou: cerca de 58 mil hectares, ou 6,26% do total. Enquanto vivo, Chico se debatia ainda com uma terceira preocupação: o analfabetismo nos seringais. O Projeto Seringueiro surgiu em 1981 em resposta a essa deficiência, identificando locais carentes de escolas e treinando ali pessoas que lecionavam voluntariamente, todos os fins de semana, para adultos e crianças. Ademir Pereira Rodrigues, 51 anos, acompanhou esse trabalho desde o início. Seu olhar percorre décadas quando recorda que participou do segundo curso de formação de professores, ainda em 1981. Ele sabe que deixou seu suor e dedicação, como digitais, nas mais de 40 escolas instaladas no interior da floresta e no conhecimento transmitido a pelo menos 3.000 alunos. Até o ano passado, o Projeto Seringueiro ainda administrava boa parte das unidades. A partir deste histórico 2008, o governo estadual tomou para si o programa, todas as suas unidades de ensino e equipe técnica, da qual faz parte Ademir.

Castanheiras estéreis resistem nas fazendas e recepcionam quem chega à cidade de Chico Mendes

Ademir foi o último a ser ouvido na cidade de Chico Mendes. Mas é a saudade de Raimundo que parece presente ao longo da estrada que leva a Rio Branco. Nas muitas seringueiras que deixaram de produzir. Nas castanheiras que pararam de frutificar, estéreis entre grandes rebanhos e saudosas da abelha mangangá, que já não pode polinizá-las por não ter como degraus as árvores mais baixas. Na matriarcal Floresta Amazônica reduzida a ilhas, depois de ceder seu lugar à sucessão monótona de fazendas e, agora, de plantações de cana-de-açúcar. Seringueira, castanheira, Floresta Amazônica, Chico Mendes. Raimundo sintetizou: saudade.

Fonte: Clarice Couto - Fotos Ernesto de Souza

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