12 agosto 2008

Livro polêmico mostra avanços e horrores da medicina de guerra no Iraque

Combates no Afeganistão durante guerra ao terror também deram combustível a obra.

Médicos americanos criaram novas formas de salvar vidas; EUA ameaçaram censura.

Livro do Exército americano mostra cirurgias feitas em áreas de guerra

As fotografias mostram membros triturados, rostos queimados, feridas sangrando profusamente. Os fotografados são, em sua maioria, soldados americanos, mas incluem iraquianos e afegãos, alguns deles crianças.

Essas imagens fazem parte de um novo livro, “War Surgery in Afghanistan and Iraq: A Series of Cases, 2003-2007”, silenciosamente lançado pelo exército dos Estados Unidos – o primeiro guia de novas técnicas para cirurgiões de campos de batalha americanos a ser publicado enquanto as guerras contempladas na publicação ainda estão sendo travadas.

As descrições de 83 casos de 53 médicos de campos de batalha são clínicas e completamente secas, mas as imagens horrorosas ilustram a natureza cruel das guerras de hoje em dia, nas quais mais pessoas são feridas por explosões do que por balas, e coletes a prova de balas salvam muitas vidas, mas deixam as vítimas mutiladas.

Os casos detalham avanços importantes no tratamento de amputações por explosões, sangramento forte, concussões causadas por bombas e outros traumas de linha de frente.

Apesar de ser produzido com muitos recursos e incluir um prefácio do correspondente da ABC Bob Woodruff, que foi seriamente ferido por uma bomba improvisada em 2006, “War Surgery” não é fácil de ser encontrado. O exército realizou grandes esforços no ano passado para censurar o livro e mantê-lo longe das mãos dos civis.

Censura

Paradoxalmente, o livro está sendo publicado ao mesmo tempo em que novos fotógrafos reclamam que estão sendo expulsos de áreas de combate por retratar americanos mortos e feridos.

Porém, tentativas de censurar o livro foram rejeitadas por vários generais cirurgiões do Exército. Pode-se solicitar o livro para o Departamento de Impressão do Governo por US$ 71; no site Amazon.com, o livro consta como fora de estoque, mas o Borden Institute, o departamento médico do Exército, afirmou que milhares de exemplares adicionais seriam impressos.

“Tenho vergonha de dizer que houve gente até no departamento médico que disse ‘só sobre meu cadáver os civis americanos verão isso’”, disse Dr. David E. Lounsbury, um dos três autores do livro. Lounsbury, 58 anos, médico internista e coronel aposentado, participou das invasões do Iraque de 1991 e 2003 e foi editor de textos sobre medicina militar no Walter Reed Army Medical Center.

“O cirurgião comum, seja ele civil ou militar, nunca viu essas coisas”, disse Lounsbury. “Sim, eles viram homens com balas no peito. Mas o tipo de explosão violenta, queimaduras e ferimentos invasivos causados pelos explosivos improvisados não se parecem com nada que eles já viram, até em uma emergência hospitalar de Manhattan. É o tipo de coisa chocante, que faz seu coração gelar, seus olhos se arregalarem. E eles precisam ver isso antes de chegar lá, porque leva-se algum tempo para assimilar essas técnicas.”

Crianças

As imagens de crianças feridas incluem alguns garotos de cinco anos de idade baleados tentando passar por um posto de controle. Outras fotografias mostram feridas cheias de sujeira, genitais decepados por bombas improvisadas, uma costela – provavelmente de um homem-bomba – cravada no corpo de um soldado, e a cauda de um míssil não-detonado saindo do quadril de um soldado.

"É o tipo de coisa chocante, que faz seu coração gelar, seus olhos se arregalarem"

Há momentos que refletem o desespero no país invadido: um afegão com trismo mandibular causado por tétano em decorrência de ferimentos causados por explosões que foram tratados em casa, e não no hospital. E momentos que refletem o exército americano moderno: uma soldada com uma dor pélvica inexplicável, que no fim se revela uma gravidez fora do útero, com risco de morte.

O livro foi elaborado para ensinar técnicas a serem adotadas por cirurgiões, abandonando velhos hábitos. Por exemplo, eles não mais bombeiam solução salina em um paciente com fortes traumas para trazer a pressão chegar novamente aos 120. “Se você faz isso, termina com um paciente altamente fraco, frio, sem coagulação sangüínea, e a alta pressão gera sangramento novamente”, disse Lounsbury. Em vez disso, eles tentam levantar a pressão para apenas 80 ou 90 com hemáceas e plaquetas extras, o que estimula a coagulação.

Além disso, a cirurgia inicial até mesmo em um paciente gravemente ferido deve ser breve – só o suficiente para controlar a hemorragia e evitar a contaminação por um intestino dilacerado. Então o paciente é levado ao tratamento intensivo para se aquecer, aumentar a pressão arterial e recuperar o equilíbrio eletrolítico. A operação seguinte geralmente dura o tempo suficiente para estabilizar o paciente para o transporte para um hospital mais sofisticado, talvez em Bagdá ou Cabul, na Alemanha ou nos Estados Unidos.

Excesso de zelo

O livro descreve um cirurgião que cometeu um erro fatal ao tentar fazer mais do que podia – uma operação de quatro horas de duração em um soldado que perdeu uma perna em uma explosão. O esforço para salvá-lo esgotou todo o banco de sangue do hospital que o atendeu, e o paciente morreu no helicóptero a caminho do próximo hospital.

E mais, neurocirurgiões que tratam vítimas de explosão agora removem uma grande secção do crânio para aliviar a pressão, mesmo se estilhaços de bomba não penetraram no corpo. Pacientes nesses casos às vezes conseguem andar e falar depois de uma explosão, mas depois entram em colapso e morrem por inchação cerebral, por isso esse novo procedimento, que é descrito pelo cirurgião que salvou a vida de Woodruff dessa forma.

Amputações também sofreram alterações. O irmão de Lounsbury perdeu ambas as pernas e um braço no Vietnã, e naquela época as amputações “guilhotina” eram feitas no lugar mais alto possível no membro. Agora, cirurgiões tentam preservar o máximo de osso e carne que puderem, mesmo se o que sobrou do membro seja uma visão horrenda. Os membros postiços de hoje em dia se moldam a ele.

Médicos também se tornaram mais ágeis em diagnosticar “síndrome compartimental” mesmo em pacientes sedados demais para sentir dor; inchação em músculos lesionados pode interromper a circulação sangüínea, levando a gangrena e amputação. Os cirurgiões agora cortam em filetes os músculos para aliviar a pressão, muitas vezes até antes que ela se forme, pois costurar tecidos saudáveis é melhor do que a perda de um membro. E quando a morfina não é suficiente, o bloqueio de nervos – dosagem de anestésico local, geralmente aplicada por uma pequena bomba segurada pelo paciente – se tornou comum no controle da dor.

"Extremamente útil"

O doutor Ramanathan Raju, chefe do departamento médico do New York City Health and Hospitals Corp. e ex-cirurgião, viu o livro e disse que ele seria “extremamente útil” para cirurgiões civis por causa do que ele ensina sobre ferimentos causados por explosões e quando um cirurgião deve parar para deixar o paciente se recuperar. “O exército deveria ficar muito feliz com isso”, disse Raju. “Antes, as pessoas diziam ‘cirurgiões do exército são como açougueiros, não seguem orientações de pesquisas médicas’. O livro mostra o quanto eles são habilidosos”.

Um dos aspectos mais impactantes do livro é que fotografias de salas de cirurgia estão ao lado de fotos da guerra que se passa fora da tenda. O livro está cheio de cenas aleatórias – são veículos pegando fogo, explosões, um médico carregando uma criança, outro usando um gorro de Papai Noel. Ele também traz retratos de soldados, geralmente confusos e exaustos; um deles até tem lágrimas no rosto.

Fotos ainda mais humanas são aquelas dos pacientes em recuperação: um iraquiano cuja mandíbula foi destruída é retratado com o rosto reconstruído, um soldado que perdeu metade do crânio sorrindo em um jantar de cerimônia com a esposa, um soldado cujo rosto foi pulverizado por uma explosão é retratado um ano depois, ainda com cicatrizes, mas bonito.

Oficiais de censura militar sugeriram várias mudanças, incluindo eliminar as fotos que mostram veículos pegando foto e os rostos de qualquer americano ferido. Eles também quiseram apagar qualquer referência a divisões do serviço militar ou a forma como os ferimentos ocorreram.

Por exemplo, segundo e-mails não-confidenciais divulgado pelos autores, um deles sugeria eliminar essa descrição: “Um soldado de capacete sofreu um ferimento na testa durante uma explosão de dispositivos improvisados. Ele era um passageiro sentado no banco da frente” de uma viatura. O censor sugeriu que a descrição ficasse assim: “Um jovem de 22 anos foi ferido em uma explosão”.

Privacidade

Duas pessoas na corrente hierárquica de comando que levantaram essas objeções – um civil e um militar – disseram que só são contra porque se preocupam com a privacidade dos pacientes e por motivos de segurança. Por exemplo, menções a certos padrões de ferimento podem entregar para o inimigo a informação de que capacetes e viaturas são vulneráveis. No entanto, os autores argumentaram que é crucial que os cirurgiões saibam que ferimentos irão ocorrer, mesmo que as vítimas usem proteção, como coletes, e acham um absurdo esconder o que ocorreu. “O inimigo já sabe disso”, disse Dr. Stephen P. Hetz, coronel aposentado e co-autor do livro.

Eles também argumentaram que o livro era destinado a soldados e fuzileiros navais e que os feridos se orgulham de serem identificados como tais. Todos aqueles cujos rostos foram mostrados integralmente, sendo americanos, iraquianos ou afegãos, concederam autorização por escrito, relataram eles. As fotos aleatórias sobre a guerra, argumentaram, foram tiradas até cinco anos atrás e algumas já foram publicadas em jornais, então não dariam aos inimigos nenhuma informação útil.

Os censores também tentaram impedir que o livro obtivesse direitos reservados e o número ISBN (international standard book number), que permite sua venda comercial, disse Lounsbury. No fim das contas, eles foram voto vencido. Kevin C. Kiley, um tenente-geral aposentado que era o cirurgião do exército quando o livro estava sendo elaborado, disse que alguns oficiais do topo da hierarquia militar estavam preocupados que as fotos “pudessem ser usadas politicamente para mostrar os horrores da guerra”.

“O contra-argumento para isso, com o qual eu concordei”, disse Kiley, “era de que esse é um livro médico que pode salvar vidas”. Ele disse que o livro “definitivamente” deveria estar disponível aos civis, particularmente aos cirurgiões.

Hetz afirmou que, sendo ex-aluno da famosa academia militar West Point e ex-oficial de infantaria (e antigo assistente de dois cirurgiões gerais, para os quais ele podia apelar diretamente), ele sempre acreditou mais que no fim o livro não seria reprimido.

“Nunca tive nenhuma dúvida de que o exército publicaria esse livro”, disse Hetz. “Era só uma questão de contornar os idiotas”.

Fonte: The New York Times

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